Porquê mesmo eu gosto de chuva?


Não é um conto, não é uma crônica, não é o começo de alguma história que eu nunca vou terminar. Isso é pra outro dia. Hoje choveu. E eu decidi pendurar a rede na sacada e ficar olhando a chuva cair. Eu gosto de chuva.



Aí, eu me perguntei: por quê eu gosto de chuva?

Quer dizer, eu sempre gostei de andar na chuva, de ouvir ela caindo e colocar uma música legal pra tocar. Mas isso não era tudo. Fiquei uma hora pensando nos comos e nos porquês. E cheguei à conclusão de que gosto da chuva porquê ela faz eu esquecer dos problemas na minha cabeça.

Na chuva, todo mundo enxerga embaçado. Na chuva, eu não sou constantemente lembrado que estou ficando cada vez mais cego de um olho, num processo lento, irreversível e extremamente doloroso. Na chuva, a luz do sol não incomoda meu olho ruim, não me faz querer entrar em um túnel escuro e viver ali.

Na chuva, todo mundo corre pra se proteger. Ninguém fica inane. Baixos, altos, gordos, magros, barbudos, carecas, todo mundo corre pra baixo de um teto. Na chuva eu esqueço das minhas mãos, das minhas costas, de toda essa maldita insegurança física. Na chuva, eu sou só mais um correndo pra baixo do toldo.

No fim da chuva, eu sempre descubro cores novas. Hoje o céu ficou azul celeste, o resto de sol se pondo com listras de laranja atrás de um monte de árvores verde-escuro, pesadas de água da chuva. São novos tons, secretos tons, escondidos embaixo da poeira e do sol normais de todo dia. É tudo único, e mais bonito.

Agora eu entendi porquê eu gosto da chuva.


As vidas inexistentes de ninguém


Com um suspiro prolongado, Rodrigo estica os braços pro alto, descansa o rosto nas mãos por um segundo, e volta a olhar para a tela do computador. Aquele maldito trecho de código já vêm dando problema desde as três horas da tarde. E já são dez da noite. Ainda assim, é melhor que suporte, pensa ele. Rodrigo nunca foi bom em explicar para outras pessoas como as coisas funcionam, ou como ele entendia tão facilmente aquele mundo de redes e computadores, códigos e interfaces. Ele sempre tinha sido “o cara que entendia daquele tipo de coisa” para a família, e a faculdade de Ciência da Computação tinha sido o caminho natural.

Trocando algumas linhas de lugar, reescrevendo outras, nada parece funcionar. Claro, ele era bom no que fazia, mas Rodrigo nunca tinha desejado essa vida para si.  Queria ser ator, e vivenciar a mágica do teatro e do cinema. Porém, aquilo não dava dinheiro, era só um hobby bobo que não garantia estabilidade, dizia a mãe dele. Então, Rodrigo decidiu seguir carreira no que sabia fazer. E agora já era velho demais pra começar outra coisa. Opa, o código funcionou. Rodrigo sorriu com o canto da boca. Sabia que uma hora conseguiria. Ligou o tocador de música, e se debruçou sobre o teclado, que tinha mais trabalho pela frente.

Do outro lado da rua, Carol repetiu a mesma sequência que vinha repetindo nos últimos quinze minutos. Depois de terminada, depositou o baixo delicadamente sobre o chão de carpete, e se sentou ao lado dele. Aquela música era particularmente difícil, e ela vinha praticando há duas semanas. Carol adorava música, e estudava desde que tinha cinco anos. Felizmente, tivera todo o apoio dos pais, e não sabia que rumo levaria sua vida sem aquilo. Depois de descansar por uns momentos, se levantou, desligou o amplificador e foi dormir. Um sono sem sonhos.
Pela manhã, como sempre, Carol acordou dois minutos antes do despertador, tomou o café frio da noite passada, com uma careta, tomou um banho e foi trabalhar. Era professora de música para crianças com deficiência mental em uma escola do outro lado da cidade. Ela acreditava que era boa professora, e os alunos a adoravam.  Ia se encontrar com o namorado depois do expediente, já que não se viam há alguns dias, porquê ele tinha viajado para fazer um curso. E ela passou o dia contando as horas.

Pela janela do táxi, Marcelo viu a mesma rua que já tinha visto um número incontável de vezes. Morava naquela casa faziam 25 anos, e não pensava em se mudar tão cedo. Além de todas as memórias que o lugar guardava, era uma bela casa. Bastante espaço para a família que ele pretendia ter um dia. E era ali também que Marcelo mantinha seu estúdio de fotografia, mas que ultimamente raramente era usado. Andava mais envolvido com questões burocráticas do que na fotografia em si. Os males do sucesso, ele dizia a si mesmo. Havia expandido demais, contratado gente demais, trabalho demais. Sentia falta do sentimento intimista de quando trabalhava sozinho, quando cada ensaio era a diferença entre pagar as contas ou deixar pra depois, mas que também eram únicos, cada ideia vibrando com identidade.
Mas não se arrependia. Tinha sido um longo caminho até ali, até a estabilidade de um negócio. Marcelo não admitia, mas sentia uma pontada de inveja do irmão, já bem encaminhado na vida, como dizia a mãe deles, e que ele deveria seguir o exemplo. Às vezes era bom ter um pouco de certeza na vida, Marcelo pensou. Desceu do táxi, pagou e se encaminhou para casa, pensando  que estava na hora de assumir compromissos mais sérios.

A fumaça do fogão fez os olhos de Alex lacrimejarem, e ele estreitou as pálpebras para enxergar através dela. As batatas estavam quase prontas, e ele nem tinha começado a preparar o molho ainda. Gritando para seus assistentes providenciarem os ingredientes, ele começou a descascar febrilmente as nozes em cima da mesa. Estava atrasado, claro, e detestava isso. Era um perfeccionista, e os clientes do seu pequeno restaurante sabiam disso. E gostavam. Era por essas e outras que podia se dar ao luxo de cobrar tão caro por pratos tão pequenos. Mas sentia falta de cozinhar receitas simples, onde o que fazia a diferença era o sentimento, e não os ingredientes.
Bebeu o café frio de uma caneca pousada ali do lado. Ele gostava de café frio, um hábito que adquiriu ao longo do tempo que trabalhou como jornalista político. Ria ao lembrar dessa época. Achava que era a carreira perfeita pra ele, todos elogiavam seu trabalho, e ele subia rápido na hierarquia do jornal. Mas no fim, não era isso, assim como não era pra ser o curso de industrialização que ele tinha feito antes disso. Ou as aulas de teatro, e de violão, fadadas ao esquecimento. Demorou anos até Alex descobrir o que queria mesmo. No fim, ele sempre soube que cozinhar, uma coisa que ele tinha sempre tratado como hobby, seria a resposta a esse problema. Largou tudo, e decidiu começar do zero. E assim foi.

Ao fim da milésima jornada, as memórias

Minhas memórias não dariam um livro. Uma coletânea, talvez. Devo à minha imaginação, e a de artistas talentosos demais pra nomear só um, as memórias de mil heróis, de uma centena de viagens e de mundos que visitei.

Já lutei pela salvação do planeta, contra uma companhia que o destruía, apenas para descobrir que eu era uma mentira. Viajei por um mundo a beira do colapso, que lutava por sua sobrevivência, em metrópoles gigantescas, parques de diversão, florestas macabras e uma cratera mortal E quê, no fim, os sacrifícios são necessários.

Já viajei por dois lados de um mesmo mundo, querendo saber quem eu era, sem nem mesmo saber direito porquê eu tinha começado a viajar. Visitei o passado e o futuro, descobri verdades terríveis e mentiras convenientes. E que tudo tem seu propósito.

Descobri que nem sempre somos o que nos dizem que somos. Que a escolhe é somente nossa, e que a luta mais difícil é contra si mesmo. Voei pelos céus de um mundo dominado pelo conflito, questionando o que eu mesmo sabia sobre certo e errado.

Já fui ao espaço, ao centro do planeta, a uma ilha parada no tempo e aqui mesmo, no meu quintal. Já lutei, já amei, sofri e refleti sobre tudo que vivi, indiretamente. Questionei meus motivos, minhas razões, minha sanidade, quem eu era e quem eu queria ser.

Montei dragões, cavalos, lagartos, baleias, andei em navios, carros, dirigíveis e naves espacias, quando na verdade nem tirei carteira de motorista. Sou um mestre espadachim, um mago muito sábio, um gatuno escondido nas sombras, um atirador com a mira de um falcão.

Mas as histórias chegam ao fim. Game Over. Última página. Cena final. E fico feliz em cada uma delas. Jamais repetirei essas jornadas. Ficarão para sempre gravadas na pedra eterna da minha memória, como eu as vivi. Voltar poderia ser... perigoso. Talvez eu tenha mudado demais para viver essas histórias como da primeira vez.

Então me contento com essa felicidade coberta por um veludo de tristeza, a sensação de dever cumprido, e de que é assim que devia terminar. Afinal, o quê importa mesmo é a jornada, certo?

Que se dane a chegada, me importa é o caminho

E o destino da viagem é a parte mais sem graça. De forma literal e metafórica, claro. Se a vida fosse uma estrada, no fim só tem a morte mesmo. Estou muito mais interessado no caminho pra chegar lá. Quem você encontra ao longo do caminho, seus amores, seus amigos, desafetos e inimigos. E que se dane se nenhum desses vai estar com você lá na frente.

Eles estão aqui agora. Quem vai estar lá na frente, isso é assunto pra depois. Quem já passou pela sua vida, mas não é mais parte dela, bem, passou, e não acho que dê pra voltar atrás.  Quem vai vir, e quem vai sair da sua rotina tão fora do comum, bom, isso saberemos de qualquer jeito, então pra que se preocupar, certo?

Um dos meus sonhos é viajar por aí. Viver de bicos, na estrada, de caronas. Não me importa pra onde eu vou. É nos caminhos que encontramos as pessoas mais bacanas. As paisagens mais tranquilas, os momentos mais profundos. Não é uma questão de onde você vai, mas como você vai. E com quem.

Quem vive de passado é museu, se dizia. Eu digo que quem vive do futuro é calendário. Aproveito o que eu tenho agora, e que se dane a chegada, o que me importa é o caminho.

A felicidade está em ser infeliz

Não é mesmo?

Não sei quando cheguei a essa conclusão. Mas quanto mais penso, mais ela faz sentido. Acho que, se me fosse oferecida, eu recusaria a oportunidade de viver em absoluta paz e felicidade.

Isso seria triste. Pense cá comigo, em como você conhece a felicidade. Defina-a. É quando você não está triste, certo. E como saberia o que é felicidade, se não ficasse triste?

Acho que, se vivesse em eterna felicidade, eu ficaria entediado fácil. Prefiro a felicidade recorrente. Ai sim. Aprender a valorizar coisas pequenas. Todo mundo sabe que eu não sou muito ganancioso. Não quero ser rico, ou melhor, não quero ser rico apenas por isso.

Quero ser rico pra aproveitar coisas diferentes, só. Talvez umas viagens, uns shows, umas coisas legais, e caras. Mas se não puder, tudo bem. Eu me contento com o que tenho, e tá de bom tamanho. O problema de muita gente, como já se dizia, é ser eternamente insatisfeito, e ficar cego.

Se me perguntassem agora onde eu encontro a felicidade, bem, é nas coisas inotáveis, diárias. É valorizar os fins de semana, quando se trabalha. É terminar de ler uma saga de vários capítulos. Essa é uma felicidade triste, uma sensação de despedida mas que dá aquele pensamento de dever cumprido.

É estralar os dedos ao som de uma música bacana, enquanto se cozinha uma receita nova. E andar na chuva. Bah, andar na chuva é muito legal.

Sou muito grato por conhecer a tristeza, a fossa, a depressão. É ela que me faz conhecer a felicidade.

Nas 7 horas da manhã eu descobri o fogo

Sustos, sustos, palavras soltas como "força" e "tragédia" permeavam uma lista de pensamentos de outras pessoas na tela do meu computador. Digo, no Twitter. Costumo dar uma checada na internet quando chego em casa do trabalho, até o sono chegar, quando ele chega.
Sábado [ou chame de domingo, seu herege que troca datas à meia-noite] não foi diferente. Cheguei em casa meio exausto, às sete da manhã, trezentas fotos a tiracolo e um arrependimento por não ter feito algumas coisas que perdi a oportunidade. Me sentei na cadeira, velhíssima, do tempo da minha vó, mas com um estofado razoável, mas que me dá uma dor nas costas do diabo. Desce a página, desce a página, links de notícias em jornais, alguma coisa de alguma tragédia. Vejamos, deve ser algo pequeno, local.

Às 7 da manhã, eu descobri o fogo.

Tragédia em Santa Maria. Naquela hora, ainda se estimava em cinquenta mortos no total. Claro, meu primeiro pensamento foi pra Bona, minha amiga, fotógrafa do Facool em SM. Ela sempre ia na Kiss. Busca desenfreada, mal digitada, por redes sociais pouco úteis em momento de pressa. Achei ela, tava bem. Mas a coisa tinha sido feia. Demorei pra dormir pensando nisso.

Ao meio-dia, eu descobri a tristeza.

Atualização após atualização, de todas as fontes diferentes. Só algumas confiáveis, mas todas terríveis. Consegui montar um quadro razoável da situação. Duzentos e poucos mortos, outro tanto de feridos. Todos recém aprovados no vestibular. Lembrei de quando EU tinha passado no vestibular. Não tinha dado muita bola. Se passei, que bom, se não passei, tentaria de novo. Mas eu sou a exceção. Apostei comigo mesmo que eram um monte de jovens cheios de sonho. Talvez alguns fossem maiores que os outros, mas não me cabe medir sonhos. Mal sei medir distâncias.

Que domingo horrível. Fatos se empilhavam, era só nisso que se falava. Não lembro o que eu almocei. Estava de ressaca. Acho que não comi. E aí, começaram a aparecer os paladinos do humor negro e da liberdade de expressão. Dos quais sou adepto. Quando apropriado. Saí da internet, e fui dormir.

Às seis da tarde, dizia um poeta, soprava um vento forte no pampa.

Carregava as almas e os sonhos de todos aqueles jovens. Tanto potencial. Tanta oportunidade. Não quero culpar ninguém. Não faço isso, nunca. Não por falta de culpa pra distribuir, mas eu não ganho nada com isso. Provavelmente, há mais culpados do que se pensa. Agora, há manifestações de todos os jeitos e tipos, clamando proibições e abstenções e sanções. Acho que só querem atenção. Mantenho minha neutralidade quanto a isso também. Desgaste mental.

Reconstruiremos, claro. As famílias encontrarão alguma forma de lidar com a tristeza. Os revoltados encontrarão outro assunto pra reclamar. Os piadistas, até já pararam. Foi um domingo de bosta.

Mas foi nesse domingo que eu descobri o fogo.