Exercicio de retórica

Abri o chuveiro, e me despi enquanto a água começava a correr. Botas, calças, meias, camiseta. Mal tinha tido a oportunidade de usar um casaco naquele inverno. Tinha sido um inverno quente, estranho. E eu gostava de casacos. Dei uma rápida olhada no espelho, como fazia sempre. A cicatriz no meu peito, que começava logo acima da barriga e terminava perto do pescoço, já dava sinais de esmaecimento. Ia terminar apenas uma fina linha branca, diziam os médicos. Minha barba continuava o mesmo emaranhado loiro e preto de sempre, parecendo um cachorro malhado. Eu nem tentava mais desembaraçá-la. 
Entrei no banho. A água pelando castigava minha pele, mas eu sabia que ia acabar me acostumando. Eu sempre tomava banho quente, até no verão. A Ana dizia que eu tentava me esquentar por dentro, que meu corpo era sempre quente mas que no fundo eu era frio. Talvez ela tivesse certa. Ela nunca me disse, nem quando foi embora. Nem a Júlia, que reclamava da minha insensibilidade com a vida dela. Essa foi sem nem se despedir direito. Talvez ela tivesse certa. 
Me sentei no chão, e deixei a água caindo na minha cabeça, só me preocupando em respirar. Quando eu era criança adorava aqueles programas de super heróis, e uns meditavam em cachoeiras. Comecei a imitar por brincadeira, e quando vi, o hábito pegou. Lembrei dos banhos que tomava com a Sonia, longos, lânguidos, lascivos. Eu acho que foi ela que me deixou desse jeito. Me deixou, segundo ela, não por me odiar, mas por não amar o suficiente. Ao que tudo indica, amava mais outras pessoas. 
 A Sonia me deixar foi difícil. Mas eu superei, eu acho. Conheci outras, uma interminável fila delas. Sempre iam embora, por um motivo ou por outro. Eu parei de me importar. Há mulheres demais para todos os banhos do mundo.

A Sineta da Manhã

Resfolegando, o ônibus parou próximo à calçada, e eu desci. Raios, ali nem era meu ponto. Tinha me desligado por alguns minutos, e perdido a parada onde eu devia descer. Bom, não fazia muita diferença mesmo. Minha casa ficava sempre a cinco minutos de qualquer lugar. Dei um sorriso amargo. Era um jeito romântico de se dizer que não tinha mais pra onde ir.
Ao olhar em volta, me surpreendi com o lugar onde tinha ido parar. Os muros eram mais altos, os grafites eram diferentes, mas aquela era, sem dúvida, a escola onde eu tinha estudado tantos anos atrás.Ora, diabos, já que eu estava ali, podia muito bem parar pra deixar as lembranças darem um olá.
Acendi um cigarro, e sem demora, as memórias começaram a aparecer, sem convite, sem receios. Afinal, foram quantos, dez anos? Isso é um monte de coisa.
É, dez anos da minha vida ali naquela escola. Lembrei das companhias, dos amigos, as promessas que iriam durar vidas inteiras. Pra alguns, até depois disso. Afinal, amigos são para sempre, não é mesmo? Não, não são. A gente acaba indo pra um lado, e os outros pra lados diferentes. No fim, a vida acaba com mais lados pra ir qu amigos para se ter.
Tossi. Devia ser o cigarro. Frio não era. Mesmo puído, meu casaco velho me protegia bem do frio daquela cidade. Apaguei o cigarro.
Lembrei dos sonhos, das idéias, as propostas malucas. Era tudo tão mais fácil, naquela época. As apostas eram menores, os riscos eram imaginários, era só querer pra realizar. Mas a gente cresce, e as coisas ficam mais difíceis. O cara que sonhava em ser músico, descobre que tem mais uma porção de carinhas como ele, querendo também. O que queria ser doutor, acaba descobrindo que faculdade não é tão fácil assim, e nem tão barata assim.
Mais um cigarro. Era o último do meu último maço. E eu não tinha mais nem moedas nos bolsos. Era hora de procurar mais uns bicos, mais uns trabalhos sem compromisso.
A sineta da manhã tocou, indicando o final das aulas. Ah, aquela saudosa sineta. Tanto significado pra um barulho tão comum. Pra uns, era a liberdade do que consideravam uma prisão de regime aberto, pra outros, o descanso entre uma luta e a outra. Mas pra todos eles, e pra mim também, significava principalmente, um adeus temporário para a escola, até mais e nos vemos outra hora.
Afinal, eu tinha que voltar pra estrada, já que a vida não vai viver por si mesma. Apaguei o cigarro com a sola da minha bota velha, virei as costas e comecei a caminhar, sem pressa de chegar, em lugar nenhum.