As vidas inexistentes de ninguém


Com um suspiro prolongado, Rodrigo estica os braços pro alto, descansa o rosto nas mãos por um segundo, e volta a olhar para a tela do computador. Aquele maldito trecho de código já vêm dando problema desde as três horas da tarde. E já são dez da noite. Ainda assim, é melhor que suporte, pensa ele. Rodrigo nunca foi bom em explicar para outras pessoas como as coisas funcionam, ou como ele entendia tão facilmente aquele mundo de redes e computadores, códigos e interfaces. Ele sempre tinha sido “o cara que entendia daquele tipo de coisa” para a família, e a faculdade de Ciência da Computação tinha sido o caminho natural.

Trocando algumas linhas de lugar, reescrevendo outras, nada parece funcionar. Claro, ele era bom no que fazia, mas Rodrigo nunca tinha desejado essa vida para si.  Queria ser ator, e vivenciar a mágica do teatro e do cinema. Porém, aquilo não dava dinheiro, era só um hobby bobo que não garantia estabilidade, dizia a mãe dele. Então, Rodrigo decidiu seguir carreira no que sabia fazer. E agora já era velho demais pra começar outra coisa. Opa, o código funcionou. Rodrigo sorriu com o canto da boca. Sabia que uma hora conseguiria. Ligou o tocador de música, e se debruçou sobre o teclado, que tinha mais trabalho pela frente.

Do outro lado da rua, Carol repetiu a mesma sequência que vinha repetindo nos últimos quinze minutos. Depois de terminada, depositou o baixo delicadamente sobre o chão de carpete, e se sentou ao lado dele. Aquela música era particularmente difícil, e ela vinha praticando há duas semanas. Carol adorava música, e estudava desde que tinha cinco anos. Felizmente, tivera todo o apoio dos pais, e não sabia que rumo levaria sua vida sem aquilo. Depois de descansar por uns momentos, se levantou, desligou o amplificador e foi dormir. Um sono sem sonhos.
Pela manhã, como sempre, Carol acordou dois minutos antes do despertador, tomou o café frio da noite passada, com uma careta, tomou um banho e foi trabalhar. Era professora de música para crianças com deficiência mental em uma escola do outro lado da cidade. Ela acreditava que era boa professora, e os alunos a adoravam.  Ia se encontrar com o namorado depois do expediente, já que não se viam há alguns dias, porquê ele tinha viajado para fazer um curso. E ela passou o dia contando as horas.

Pela janela do táxi, Marcelo viu a mesma rua que já tinha visto um número incontável de vezes. Morava naquela casa faziam 25 anos, e não pensava em se mudar tão cedo. Além de todas as memórias que o lugar guardava, era uma bela casa. Bastante espaço para a família que ele pretendia ter um dia. E era ali também que Marcelo mantinha seu estúdio de fotografia, mas que ultimamente raramente era usado. Andava mais envolvido com questões burocráticas do que na fotografia em si. Os males do sucesso, ele dizia a si mesmo. Havia expandido demais, contratado gente demais, trabalho demais. Sentia falta do sentimento intimista de quando trabalhava sozinho, quando cada ensaio era a diferença entre pagar as contas ou deixar pra depois, mas que também eram únicos, cada ideia vibrando com identidade.
Mas não se arrependia. Tinha sido um longo caminho até ali, até a estabilidade de um negócio. Marcelo não admitia, mas sentia uma pontada de inveja do irmão, já bem encaminhado na vida, como dizia a mãe deles, e que ele deveria seguir o exemplo. Às vezes era bom ter um pouco de certeza na vida, Marcelo pensou. Desceu do táxi, pagou e se encaminhou para casa, pensando  que estava na hora de assumir compromissos mais sérios.

A fumaça do fogão fez os olhos de Alex lacrimejarem, e ele estreitou as pálpebras para enxergar através dela. As batatas estavam quase prontas, e ele nem tinha começado a preparar o molho ainda. Gritando para seus assistentes providenciarem os ingredientes, ele começou a descascar febrilmente as nozes em cima da mesa. Estava atrasado, claro, e detestava isso. Era um perfeccionista, e os clientes do seu pequeno restaurante sabiam disso. E gostavam. Era por essas e outras que podia se dar ao luxo de cobrar tão caro por pratos tão pequenos. Mas sentia falta de cozinhar receitas simples, onde o que fazia a diferença era o sentimento, e não os ingredientes.
Bebeu o café frio de uma caneca pousada ali do lado. Ele gostava de café frio, um hábito que adquiriu ao longo do tempo que trabalhou como jornalista político. Ria ao lembrar dessa época. Achava que era a carreira perfeita pra ele, todos elogiavam seu trabalho, e ele subia rápido na hierarquia do jornal. Mas no fim, não era isso, assim como não era pra ser o curso de industrialização que ele tinha feito antes disso. Ou as aulas de teatro, e de violão, fadadas ao esquecimento. Demorou anos até Alex descobrir o que queria mesmo. No fim, ele sempre soube que cozinhar, uma coisa que ele tinha sempre tratado como hobby, seria a resposta a esse problema. Largou tudo, e decidiu começar do zero. E assim foi.

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